segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A tampinha da laranja






Sua doçura tem gostinho de infância. É como raspar o fundo da panela. Avistei uma árvore e o gostinho de laranja subiu ao céu da boca. Aquele desejo inesperado subitamente, ou eu comeria, ou passaria até o fim do dia sentindo aquele gostinho habitar meus lábios.

Nos sentimos tão diminuídos quando criança diante do irmão mais velho. Desapontado com nós mesmos após deixar nossa laranja com crateras que acabam com sua escultura, seu desenho à pincel fino. Invejamos o irmão mais velho por dar vida aos traços feitos por Deus. Assim como nos colocamos ao topo de um pedestal da inteligência quando nos permitimos ser capazes de recortá-la em seu molde perfeito. Admiramos como a beleza é possível diante de seus olhos. As mãos que conduzem a faca lentamente por volta de seu corpo milimetricamente pensado. Cada volta com seu glamour. Beleza estonteante acabada por suas mãos. Despir a laranja no desejo de sua doçura. Água na boca insistente, que não pode esperar para admirar mais que alguns segundos a maravilha que é dar o toque final nesta obra de arte. Depois de seu corpo nu, pouco importa as roupas que serão jogadas fora. O foco é premeditado apenas em seu corpo que nossa boca anseia em sentir.

Essa doçura da laranja fez com que lembrasse de meu falecido avô. De como era linda a incansável tradição, de logo após o almoço correr para o pé de laranjeira nos fundos da casa. Ele pacientemente descascava uma a uma as laranjas que os netos lhe pediam. Podre vô, não dava tempo para que também degustasse a fruta, assim que cortava a tampinha da laranja do ultimo neto já havia um outro que queria uma segunda ou uma terceira. Depois que todos ficavam satisfeitos por deixar a árvore em miséria de frutos, íamos brincar em frente a casa. Enquanto ele puxava sua cadeira, cruzava as pernas e fumava seu silencioso cigarrinho, e enfim, degustava descansadamente sua laranja vendo os netos a correr por volta das árvores.

Tratamos o bagaço da laranja como certas coisas em nossa vida. É nele que se encontram os maiores nutrientes e vitaminas e vejam só qual a parte que rejeitamos. É como dizem, que a melhor parte da vida não se encontra onde todos procuram, as coisas boas nem sempre estão nos lugares mais belos ou aconchegantes. A fruta mais doce não está na parte mais baixa da árvore, nem nos maiores frutos. Também não depende da forma como conduzimos a faca. Mas para onde a apontamos, a qual fruto destinamos.


Em meio ao pomar, não são todos os pés que darão apenas frutos amargos, ou apenas doces. Isso pode variar da análise de quem os escolhe. De quem sabe como escolher. De quem sabe como conduzir a faca ao seu alvo. Se a fruta estiver podre, de nada adianta compensá-la com 2kg de açúcar. A doçura cobiçada é aquela que nasce consigo. Aquela contida em seu interior. No entanto, apenas tem a oportunidade de senti-la, quem possui a aptidão de apontar a faca na direção certa. De dar o pulo mais alto para alcançá-la. Quem não mede esforços para conseguir o que quer. Quem se encanta com a leveza do movimento com que o fio da faca traduz a satisfação em ter sido válido cada esforço. O prazer da tampinha da laranja é para aqueles que se empenham em aprender a dançar enquanto despi-la.


E essa foi mais uma crônica publicada no dia 09 de setembro no jornal O Correio. Por falta de tempo (como sempre) acabei demorando pra postar no blog, mas enfim aqui está.      ~Beijinhos da Mih *-*

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