terça-feira, 24 de setembro de 2013

A chuva roubando a vida

É difícil viver sem saber pra que se vive. Sem saber o que se quer. É complicado sentir-se parte de uma folha seca que atravessa mundos ao soprar de um vento desgovernado. É difícil sentir-se confortável ao ser levado pelas formigas, por mais que para isso seja preciso ser um doce. Seria o caso de um doce sem doçura? É como cantar sem melodia. Sorrir sem contagiar a alma. Beijar uma flor sem aspirar seu perfume. Caminhar sem ouvir os passos. É como gritar sem voz. Lembrar do que desconhece. Abraçar sem os braços. É como gelar em chamas. É não fazer sentido algum diante de cada instante, é como não estar vivo.

Me sinto assim ao ouvir a chuva. Desconheço a existência de alguma relação. Apenas vivo esse enigma. A chuva parece mudar meu ser interior. Meu eu deseja o que jamais desejaria em dias considerados normais. Tem vontades absurdas. Necessidades insensatas. Meu corpo e mente, sofrem de um medo oprimido dos dias chuvosos. A chuva tem mistérios que mexem com a minha alma, mas felizmente ou não, isso é algo passageiro, que apenas abala por alguns instantes meu eu psicológico.

Mas é estranho sentir-me como uma desconhecida nos dias chuvosos. Desconheço o que desejo. Desconheço a mim. E apenas reconheço que em algum momento quando a chuva parar o meu eu voltará ao meu corpo, e por mais que tente, não conseguirei decifrar os vestígios que um dia chuvoso pode deixar.

E eu que sempre me senti acolhida pela chuva. Hoje em meio à sua calmaria, sinto-me a navegar em um mar de insegurança, onde o que preciso é ser acolhida, mas tudo que encontro é solidão, silêncio e escuridão. Ou restos de um naufrágio súbito. Queria eu poder decifrar a chuva, mas ela me fornece mais caos do que sua calmaria. Está tudo em perfeito estado lá fora, mas aqui dentro, essa chuva inunda e mata afogado muitos dos sentimentos que passam a tornarem-se desconhecidos, e em meio a esse vendaval, ressurgem coisas que pensava não mais existir por um longo tempo.

O som úmido de gotas que caem em uma sequência melódica, faz com que me sinta em uma vida passageira a qual não vivo, sou levada pelo passar dos dias, o que não é de toda verdade, mas sinto como se fosse. Seria como ser carregada no colo de olhos vendados. Como se dormisse 360 dias do ano. Como se permanecesse em casa 20 horas por dia. Seria como se falasse apenas uma vez por semana. Enxergasse a luz do sol três vezes no mês. Como se sentisse o sabor da vida uma vez a cada semestre.

Nada parece fazer sentido, e de fato não faz. Em dias tomados por esse sentimento de angustia, meu instinto exige que nada disso ocorra de verdade. Intima meu eu a viver de forma mais insana, de forma que aproveite mais cada milésimo de segundo como se eu já não aproveitasse o máximo que posso. Como se eu já não fosse capaz de viver como o vento, espalhando aquilo que encontra, no caso, as coisas boas que levo de lugar a outro. Porque se for pra viver de olhos fechados levada como folha seca, eu prefiro ser o verdejar que se renova a cada primavera, pelo menos assim poderia observar o cantar dos pássaros à minha volta.


E enfim, acho que consegui passar daquela famosa fase do escritor em crise. Fiquei sem escrever textos novos por um bom tempo, as inspirações não rendiam mais do que um ou dois parágrafos, mas espero que tenha sido realmente uma fase passageira. O amor pela escrita sempre prevalesse ♥         ~Beijinhos 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A tampinha da laranja






Sua doçura tem gostinho de infância. É como raspar o fundo da panela. Avistei uma árvore e o gostinho de laranja subiu ao céu da boca. Aquele desejo inesperado subitamente, ou eu comeria, ou passaria até o fim do dia sentindo aquele gostinho habitar meus lábios.

Nos sentimos tão diminuídos quando criança diante do irmão mais velho. Desapontado com nós mesmos após deixar nossa laranja com crateras que acabam com sua escultura, seu desenho à pincel fino. Invejamos o irmão mais velho por dar vida aos traços feitos por Deus. Assim como nos colocamos ao topo de um pedestal da inteligência quando nos permitimos ser capazes de recortá-la em seu molde perfeito. Admiramos como a beleza é possível diante de seus olhos. As mãos que conduzem a faca lentamente por volta de seu corpo milimetricamente pensado. Cada volta com seu glamour. Beleza estonteante acabada por suas mãos. Despir a laranja no desejo de sua doçura. Água na boca insistente, que não pode esperar para admirar mais que alguns segundos a maravilha que é dar o toque final nesta obra de arte. Depois de seu corpo nu, pouco importa as roupas que serão jogadas fora. O foco é premeditado apenas em seu corpo que nossa boca anseia em sentir.

Essa doçura da laranja fez com que lembrasse de meu falecido avô. De como era linda a incansável tradição, de logo após o almoço correr para o pé de laranjeira nos fundos da casa. Ele pacientemente descascava uma a uma as laranjas que os netos lhe pediam. Podre vô, não dava tempo para que também degustasse a fruta, assim que cortava a tampinha da laranja do ultimo neto já havia um outro que queria uma segunda ou uma terceira. Depois que todos ficavam satisfeitos por deixar a árvore em miséria de frutos, íamos brincar em frente a casa. Enquanto ele puxava sua cadeira, cruzava as pernas e fumava seu silencioso cigarrinho, e enfim, degustava descansadamente sua laranja vendo os netos a correr por volta das árvores.

Tratamos o bagaço da laranja como certas coisas em nossa vida. É nele que se encontram os maiores nutrientes e vitaminas e vejam só qual a parte que rejeitamos. É como dizem, que a melhor parte da vida não se encontra onde todos procuram, as coisas boas nem sempre estão nos lugares mais belos ou aconchegantes. A fruta mais doce não está na parte mais baixa da árvore, nem nos maiores frutos. Também não depende da forma como conduzimos a faca. Mas para onde a apontamos, a qual fruto destinamos.


Em meio ao pomar, não são todos os pés que darão apenas frutos amargos, ou apenas doces. Isso pode variar da análise de quem os escolhe. De quem sabe como escolher. De quem sabe como conduzir a faca ao seu alvo. Se a fruta estiver podre, de nada adianta compensá-la com 2kg de açúcar. A doçura cobiçada é aquela que nasce consigo. Aquela contida em seu interior. No entanto, apenas tem a oportunidade de senti-la, quem possui a aptidão de apontar a faca na direção certa. De dar o pulo mais alto para alcançá-la. Quem não mede esforços para conseguir o que quer. Quem se encanta com a leveza do movimento com que o fio da faca traduz a satisfação em ter sido válido cada esforço. O prazer da tampinha da laranja é para aqueles que se empenham em aprender a dançar enquanto despi-la.


E essa foi mais uma crônica publicada no dia 09 de setembro no jornal O Correio. Por falta de tempo (como sempre) acabei demorando pra postar no blog, mas enfim aqui está.      ~Beijinhos da Mih *-*

domingo, 30 de junho de 2013

A gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma com o garoto pedindo esmola na rua. E, porque está acostumado, a rotina faz com que nem o note mais. E, porque não nota esquece a sensibilidade. E, porque não existe mais o que toca o coração, perde a humildade.

A gente se acostuma a sorrir para não transparecer a dor. E, porque sorri sem estar feliz, já não sabe mais qual o sabor de um sorriso verdadeiro. E, porque não lembra como é bom senti-lo, esquece de cativá-lo em outras pessoas. E, esquece de fazer feliz e sentir-se verdadeiramente feliz.

A gente se acostuma de tanto ouvir essas campanhas de agasalho feitas no inverno. E por se acostumar, a gente nem liga mais, o cérebro entra em seu estado automático e nem reconhecemos mais o que significa. E por não notar seu sentido, acabamos por fechar os ouvidos para o “ajudar ao próximo”.

A gente se acostuma por hábito, porque nos acomodamos demais para mudar. E, porque nos acomodamos não vivemos, apenas estamos vivos. E, porque não vivemos, morremos como flores de plástico que nunca exalam perfume algum.

A gente se acostuma a ouvir a chuva sem decifrá-la. E por não ouvi-la em suas mais variadas sincronias de sons perdemos a sensibilidade. E por perder a sensibilidade não notamos nem as pessoas à nossa volta. E por não notar as pessoas, vivemos indiretamente solitários. E por viver dentro de sua solidão nos tornamos egoístas demais para notar o mundo.

A gente se acostuma a ler o jornal e ao fechá-lo não mudar nada em sua forma de pensar. E por não adquirir nenhuma mudança, já não existe mais motivos para ler. E por não ter motivos para ler, os livros são esquecidos. E por esquecê-los é deixado de lado todo o conhecimento escondido por entre as páginas fechadas. E por deixar de lado conhecimentos ricos, é mantida a intelectualidade em estados precários, de forma que, este é o fundamental para o crescimento na vida de todos.

A gente se acostuma a viver atrás do computador. E por se acostumar, esquecemos como é sair para conversar. E porque não é mais preciso sair para manter contato com as pessoas, acabamos por manter-se em um ciclo monótono. E por seguir constantemente neste mesmo ciclo, é esquecido o quanto é valioso um contato pessoal com os amigos.

A gente se acostuma a ouvir as mesmas músicas. E por ouvir sempre as mesmas deixamos de conhecer músicas novas. E por não conhecer novos artistas, deixamos de conhecer novas culturas. E por não conhecermos novas culturas, nos conformamos com o pouco que conhecemos. E por se conformar com este pouco, criticamos aquilo que nem sequer conhecemos.

 Eu sei que a gente vive em uma vida feita de costumes. Mas não devia.